[Não preciso que me digam que é impuro o que escrevo]
Não preciso que me digam que é impuro o que escrevo
vê-se pelas cicatrizes nos dedos da mão direita (a calosidade
amarelada de nicotina no dedo anelar é trabalhinho escravo)
também a espinha lixada e a falta de dentes o mostram bem
não tenho biografia não a procurem no canto mal cheiroso
no medo da noite (o catecismo não é igual para todos não é?)
a minha biografia se quiserem começa e acaba no registo civil
em mil novecentos e cinquenta e quatro também tive direito
a nascer numa geração rasca a de pais anónimos e mães solteiras
o que escrevo é impuro como os sangues menstruais e o mijo
a destilarem amoníaco a federem como as fábricas da cuf
na outra margem onde se escrevia em peles curtidas pelo silêncio
ou como o sangue coagulado dos mortos na guerra colonial
pestes é que não têm faltado na minha vida…
deambulo pelos sonhos onde me perco extenuado e amanheço
quase sucumbindo ao ar excessivo que me invade os pulmões
desremelo os olhos e a esbracejar inauguro o dia saído da noite
onde se pesca palavras e outros excrementos da alma.
[de Registo Civil. Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010]
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