Poesia
» REGISTO CIVIL. POESIA REUNIDA
Lisboa, Assírio & Alvim, 2010
Tríptico em negro-azul (a partir de Terrasse à Rome, de Pascal Quignard)
[dois]
Quando há pouco descia do monte aventino cruzei-me
com caravaggio que levava no rosto cores indecisas
talvez as das sombras tomadas das minhas sombras
talvez um pouco do luto que arrastei aventino abaixo
onde vi nos olhos do meu filho o desejo de me matar
também adivinhaste a minha morte assim marie aidelle
leste também nos traços do meu rosto este meu fim?
adivinhaste o horror de eu poder ser morto
por um filho incógnito que me odeia sem me conhecer?
o que lêem os outros no meu rosto marie?
contei-te muito da minha vida nas gravuras que fiz
fixei os nossos corpos anónimos nas cartas obscenas
vendidas na loja da via giulia com a tabuleta da cruz negra
mas agora perto do fim vejo o tanto que faltou dizer-te
não te disse como cicatrizaste as feridas abertas dentro de mim
não te disse como os meus olhos fechados viam os teus a olhar o meu rosto
nunca te disse a verdadeira cor do teu corpo
a arte é assim fica sempre alguma coisa por dizer
ou talvez não haja nada para dizer ou não se possa
seja como for não to direi agora de maneira alguma
a minha garganta está quase fechada já não respiro
já não tenho força para fazer o buril rasgar a placa de cobre
ou talvez já não tenha qualquer outra coisa ou tudo
não sei
estás à minha espera no terraço?
» TALISMÃ
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004
Chove muito e a roupa no estendal está toda molhada
aconchego-me no calor de uma hesitação empírica
depois vou até aos correios olhar estupidamente para os guichês
volto não menos estupidamente para casa sem nada para olhar
e escrevo as cartas atrasadas com os melhores cumprimentos
menos aquela em que te falaria da adequação dos corpos
solitários e da espera sem necessidade de feridas ou sofrimento
e da difícil aprendizagem nos dias chuvosos como o de hoje
seria uma carta sem intervalos nas palavras nem desculpas
seria uma carta breve sobre a arte de perceber o sim e o não
e seria lacrada com a marca dos meus lábios
mas agora o que fazer das nuvens que se rasgam em chuva?
» A REALIDADE INCLINADA
Lisboa, Averno, 2003
Hoje acordei a oferecer-te poemas
dos outros dos grandes espíritos
os das enormes cabeleiras divinas
incandescendo sob as luas negras
lá fora brilhavam os girassóis aturdidos
pela constelação de sóis metálicos
dispersos pelos quatro pontos cardeais
ao pequeno-almoço servi-te sopa de espinafres
e dois carapaus assados em óleo de palma
após o que
da parte de trás da realidade
um pouco inclinada
para a esquerda
surgiu
o gato
da vizinha
para os restos
de poemas.
» MITO, SEGUIDO DE PALAVRAS GRAVADAS NA CALÇADA
Lisboa, & etc, 2001
e agora lembro-me do homem que numa só noite lá em casa fez a minha mãe louca com um filho
e esse homem também se deve lembrar do ofício do meu sapateiro remendão
que uma vez à porta do tribunal lhe talhou no nariz uma conta por saldar
com aquela navalha afiada com que golpeava solas meias-solas e gáspeas
esse homem experimentou a navalha do ofício e é por isso que há no rosto dele uma falha
e é talvez por essa falha no rosto do meu pai que o troquei pelo outro homem
o homem que não admitia qualquer falha numa obra sua bota filha ou neto
(…)
» VENTILADOR
Espinho, Elefante Editores, 2000
Não é que não pense no fim do mês
até já pus o íman no contador
angustia-me tanta energia invisível
penso no fim do mês e da vida
e não sei o que me dói mais
os olhos abertos da minha filha
esperam por saber como perguntar
o teu pai filha ainda espera respostas
ou como construir as perguntas certas
esvai-se a casa e eu com ela
preocupado com as respostas
com as sobras das perguntas
enredo as palavras e embalo-as.
» MUNDO DE AVENTURAS
Évora, atægina, 2000
enraizados no soalho podre.
Neles se sentam as mulheres.
Já não se defendem do exército
dos subterrâneos roedores
esta pequena realeza sem poder
sucumbirá à insanável tristeza.
A casa é um navio abandonado
há muitos séculos no fundo do mar
a peçonha tomou o chão e as paredes.
As mulheres emitem sons desarticulados.
Têm o valor de uma sopa de couves e feijões.
Comerás dela cada trago como um suplício.
Não as nomearás enterrarás os seus nomes
até o tempo apagar deste chão a sua lembrança.
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